Pouco antes do Natal, foi anunciado que o Sindicato dos Professores tinha vencido duas acções contra o Ministério da Educação em tribunal administrativo, estabelecendo-se jurisprudência no sentido de que as célebres aulas de substituição, tão contestadas pelos professores, davam direito ao pagamento das mesmas como trabalho extraordinário. Se esta jurisprudência se vier a fixar como doutrina definitiva, isso significará que os professores terão conseguido, nos tribunais e por via financeira, derrotar o Ministério. Porque não se imagina que o Ministério disponha das verbas necessárias para pagar as aulas de substituição como trabalho extraordinário - além de que isso subverteria por completo todo o espírito e alcance da medida.
As aulas de substituição, como toda a gente percebeu (e, primeiro que todos, os próprios professores), destinam-se a tentar pôr termo ao flagelo do absentismo dos professores, sem paralelo em nenhum outro sector de actividade, público ou privado. Estabeleceu-se há décadas o princípio de que um simples atestado médico, que toda a gente sabe ser, regra geral, falso, mas que é incontestável e incontestado, basta para que um professor deixe sem aula uma turma de trinta alunos. O que eles fazem, aparentemente sem remorsos nem qualquer espécie de crítica dos seus pares.
Ora, se a consciencialização profissional não funciona neste caso, se o absentismo dos professores não tem, legalmente, qualquer reflexo no salário ou na carreira, só restam duas atitudes: ou nada fazer ou fazer alguma coisa. O primeiro caminho, e o mais cómodo, foi o adoptado por todos os governos até aqui - com os brilhantes resultados que se conhecem a nível da aprendizagem e da preparação dos alunos. O segundo caminho é aquele que tem sido adoptado corajosamente pela actual ministra, Maria de Lurdes Rodrigues, com a contestação corporativa que se tem visto.
Não podendo actuar por via da penalização salarial (abençoada Constituição!), a ministra lembrou-se de um verdadeiro ovo de Colombo: as aulas de substituição. A função mais aparente deste mecanismo, em que um professor que está na escola e dentro do seu horário mas sem aulas para dar é chamado a substituir outro que faltou - é, obviamente, a de manter os alunos ocupados e minimizar os danos causados pela falta do professor em causa. Os sindicatos têm contestado a utilidade disto, com o argumento de que um professor não está preparado para leccionar fora da sua especialidade, nem lhe cabe “tomar conta dos meninos”, mas apenas ensiná-los. Não vale a pena perder muito tempo com este argumento, também esgrimido em termos perfeitamente idiotas por alguns alunos: um professor que não é capaz de substituir um colega durante uma aula, a quem não ocorre nada de útil para ocupar os alunos nesse tempo, é definitivamente incompetente e não está na escola a fazer nada.
Mas a finalidade mais importante das aulas de substituição, e o seu verdadeiro ovo de Colombo, é que o sistema permite finalmente consciencializar os absentistas habituais de que as suas faltas causam danos e incómodos concretos - e, agora, já não apenas aos alunos, mas também aos colegas. Parece evidente que não passará a ser muito estimado pelos colegas um professor que os obrigue sistematicamente a substituí-lo. Quanto mais um faltar, mais os outros se terão de sacrificar. Alguém consegue contestar a justiça pedagógica e exemplar desta medida?
Falhados os argumentos para tal, perdida a batalha junto da opinião pública constituída pelos pais e pelos alunos que se sentem no direito de ter aulas quando vão à escola, os sindicatos lembraram-se de deitar mão do argumento financeiro e, ao que parece, encontraram um inestimável aliado nos tribunais administrativos.
Estas sentenças são aberrantes, sob diversos pontos de vista: do ponto de vista da razão invocada, do ponto de vista ético (afinal, os professores não são capazes de dar aulas de substituição, mas, se lhes pagarem a dobrar, já são?), e, sobretudo, do ponto de vista cívico - decidindo contra o bem geral, que é o da comunidade de alunos e pais, e a favor de uma minoria sócio-profissional. Aliás, é esta a tendência habitual dos tribunais, quando chamados a resolver questões laborais - revelando um total desconhecimento do que seja a vida das empresas e dos locais de trabalho, onde os trabalhadores não gozam, nem podem gozar, como eles, de um estatuto de total independência e irresponsabilidade.
Imaginarão os senhores juízes autores destas sentenças que existe alguma empresa que possa sobreviver, se quem nela manda não puder encarregar um trabalhador sem nada que fazer de se ocupar de uma tarefa a cargo de um outro que faltou? Ou se só o puder fazer se lhe pagar isso como trabalho extraordinário, apesar dele estar dentro do seu horário de trabalho? Imaginarão os senhores juízes que há algum país do mundo onde este regime vigore?
É habitual, sobretudo entre os empresários, ouvir queixas sistemáticas à inflexibilidade da lei dos despedimentos: segundo eles, não é possível despedir ninguém em Portugal porque a lei o não permite. Ora, eu discordo desta ideia feita: o que a lei não permite é o despedimento sem justa causa. Trata-se, obviamente, de uma posição ideológica, que eu partilho: não confio o suficiente nos empresários portugueses para abdicar deste princípio. Mas, a meu ver, não é por aí que se torna inviável despedir um mau trabalhador, porque a lei fornece motivos suficientes para tal e, desde logo, o princípio geral de “qualquer facto que, pela sua gravidade, torne impossível a subsistência da relação de trabalho”.
O problema não está aí, está algures. Está na forma como os juízes do trabalho interpretam a lei - ou, melhor dizendo, a forma como a maior parte das vezes não chegam sequer a interpretá-la nem a analisar os factos invocados, decidindo logo a favor do trabalhador, com base em questões meramente formais que têm a vantagem acrescida de dispensar os juízes de ter de fazer o julgamento. E, nos casos em que o fazem, os juízes revelam, como já disse, uma notável ignorância e incompreensão do que sejam as relações de trabalho nas empresas e no mundo normal, onde os trabalhadores se têm de bater continuamente para mostrar o seu valor e os patrões têm o direito de exigir o melhor a quem pagam. É fácil abstrair-se disso quando, faça-se o que se fizer, bem ou mal, se tem sempre o ordenado garantido ao fim do mês e a progressão automática na carreira.
É esse sistema que a justiça se prepara para consagrar a favor dos professores, deitando por terra uma das verdadeiras reformas deste Governo. Como, além de mais, se tornou moda contestar a acção governativa através de providências cautelares nos tribunais - o que se traduz numa curiosa usurpação de funções, em que o poder judicial absorve o governativo, como no caso do encerramento das maternidades -, é provável que a justiça venha a conseguir anular, uma por uma, todas as tentativas de reformar o sistema de castas corporativas em que vivemos. Depois, no final, presumo que apaguem a luz e fechem a porta.
Miguel Sousa Tavares in Expresso
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